sexta-feira, 25 de junho de 2010

Alea viu uma certa menina de Guantánamo, por Roger Bravo


A famosa canção cubana,Guantanamera, rendeu não apenas a ótima troça carnavalesca em paródia pornofônica, “Quanta Ladeira” de Lenine e Cia., mas também mote para o último filme de Tomás Gutierrez Alea, o mais conhecido cineasta cubano. A melodia é usada, ao longo de todo o filme, também com letras modificadas em relação às clássicas da Poesía I dos Versos Sencillos, de José Marti em 1891. A letra no filme comenta o estado de espírito das personagens, com um humor bem diferente do Quanta Ladeira, é certo (sem seus os deliciosos palavrões e o tom direto), mas também com pinceladas de crítica social.

Dirigido em parceria com Juan Carlos Tabio, Alea desenha seu quadro amoroso, político e espirituoso da Cuba no final do século XX com roteiro escrito a seis mãos com Elisio Alberto. A dupla de diretores há pouco saída de estrondoso sucesso com Morango e Chocolate, arriscou-se no terreno dos chamados filmes de estrada.

Alguns dos mais famosos road movies são, em parte, famosos e precisamente isto – road movies – por terem sido feitos nos Estados Unidos da América, nação reconhecidamente obcecada por carros, gasolina e... filmes. Os EUA, a superpotência atual e Cuba, a pequena ilha, pobre, revolucionária e exuberante, exercem antagonismo político desde 1959 quando da Revolução Socialista que levou Fidel Castro ao poder. Dramatica e geograficamente próximas as duas nações opõem-se num embate ideológico e econômico, uma contenda interminável que já foi apelidada de Davi contra Golias. Bom, não deixa de ser curioso ver um road movie justamente cubano feito para a tela do cinema, mídia dominada comercialmente pelos estadunidenses há quase um século. Como se não bastasse esta aproximação é impossível desconsiderar que a Guantanamera do título significa mulher nascida em Guantánamo, lugar que também serve à conhecida base naval dos EUA em pleno território cubano.

Indo de encontro ao pensamento mais comum acerca do castrismo sobre liberdade de expressão é bom ver um filme, realizado logo embaixo da barba do “Homem”, cheio de detalhes da dura vida dos cubanos, em sua essência alegórica, um filme anti-castro. Contudo, seria mesmo uma crítica apenas ao regime de Fidel Castro ou, principalmente, ao cruel e injustificável embargo econômico do Golias do Norte? Seria ele, o embargo afinal, o grande culpado pelas mazelas do povo cubano? Ou, ainda, seria Guantanamera, o filme, uma crítica a ambos, ao embargo e ao regime castrista?

Seja como for, a aposta do autor de Memórias do Subdesenvolvimento e seus camaradas não se dá tanto por mensagens tão obviamente políticas e, sim, no bom e velho amor, compañero de siempre en nuestro cinema de lágrimas.

É em nome do amor que Yoyita, guantanamera de 67 anos, decide reencontrar antiga paixão juvenil após cincoenta anos de ausência na Guantánamo de Gina, sua sobrinha. Logo depois de ser homenageada em sua cidade natal encontra-se com seu amor de juventude. O encontro é breve, mas suficiente para trocarem recordações do passado saudoso e observarem foto antiga de uma menina. Yoyita, a poucos minutos da morte, diz que teve a impressão de ter visto a garota há pouco. Cándido não a reconhece. A brevidade do encontro dá-se por conta da morte repentina nos braços do amado. Neste ponto o filme ensaia interessante proximidade entre uma ternura bela entre velhos, uma certa comicidade e o tema da morte, no entanto o restante do filme não emplaca a mesma energia inusitada.

La Guantanamera é uma manifestação do folclore do cubano campesino, o guajiro. Todavia, a expressão “me cantó una guantanamera” significa dizer que alguém contou alguma história triste, dada a ligação da música com um programa radiofônico antigo que narrava mortes em causos policiais. Se é estranho pensar na música romântica e alegre próxima deste assunto, o filme de Alea/Tabio soube transitar justamente neste terreno incomum com sua espirituosidade declarada em meio ao road movie de cortejo fúnebre.

A morte de Yoyita é o estopim para todo o enredo que consiste no transporte do corpo dentro do sistema criado por Aldo. O sucesso deste novo sistema é a alavanca para a ascensão na carreira pública de Aldo, pelo menos este é o seu sonho. Durante a viagem Gina encontrará diversas vezes o ex-aluno, Mariano, agora engenheiro formado que prefere ser caminhoneiro por ganhar mais dinheiro nesta profissão e poder também traçar muitas mulheres ao longo das viagens.

Personagem clássico, o cafajeste de bom coração, não hesita em dar no pé ao ser informado por uma de suas amantes que vai ser pai, contudo, acredita que pode “tomar jeito” ao lado de um verdadeiro amor, sua ex-professora. O boa-vida (que veste camiseta com desenhos de coqueiros e a palavra Copacabana estampada no início do filme) tem por companheiro de boléia Ramón, mulherengo experiente, criador da tese de que para ter menos problemas com las chicas é preferível pegar as gordas... Há boas piadas, nem sempre politicamente corretas ao longo do filme. Outras, bem simples, exploram a tradição física das gags. Nestas, Ramón é atingido acidentalmente por objetos voadores lançados, em fúria, por amantes desprezadas, na direção do garanhão, Mariano.

Entre um contratempo e outro, mais uma oportunidade para um encontro entre Gina e Mariano, desta vez às portas de um hospital para onde o comboio fúnebre, por decisão ética de Gina, decidiu levar uma parturiente desesperada. Já Mariano socorre o amigo atingido no rosto. À visão de quase uma dezena de profissionais recebendo a mulher grávida na entrada do hospital não cabe nenhum gesto de incredulidade, visto o conhecido alto nível do atendimento público de saúde naquele país. Para melhor realçar as dificuldades, melhor reconhecer o lado bom de ser cubano e não estadunidense, especialmente se for logo depois de ver Sicko, de Michael Moore, 2007.

Missivista por convicção, Mariano, por carta, declarou seu amor à Gina ainda nos tempos de universidade. Difícil disfarçar o incômodo com o flashback sentimentalóide e didático quando do primeiro encontro entre este e Gina no filme, seja pela aplicação grosseira do preto-e-branco seja pela trilha sonora melosa e pouco discreta.

Guantanamera não oferece desafios, ousadias formais. Sua narrativa e fotografia são inclusive, bastante convencionais. As situações e personagens guardam um sabor de velhos conhecidos e esta familiaridade guarda, curiosa e concomitantemente, mesmo no que tem de negativo lugar-comum, uma certa suavidade ou transparência cativante entre o grande público.

O ganhador do prêmio de Melhor Filme e Ator no Festival de Gramado é trabalho interessante sobre humor em mares politicamente calientes. O quanto de seu desacerto na comédia não pode ser tanto creditado à sua ligação com temas políticos, mas talvez a certas deficiências de fotografia e montagem. Ritmo claudicante em certos momentos aliado a cortes em tempos equivocados fazem naufragar o efeito cômico de certas cenas por mais habilidosos que possam ser os atores. A fotografia escorrega em outros momentos, transparecendo falsidade na movimentação dos personagens, quando, por exemplo, do tabefe de Cándido em Adolfo ao ouvir sua descrição vulgar da morte de Yoyita.

Ao contrapor a dignidade e o senso de liberdade da protagonista feminina com o pragmatismo truculento de seu marido, Adolfo, a película sinaliza mais uma nuance crítica ao regime.

Por todos os lados a moeda cubana não parece encontrar a menor receptividade e a procura incessante por comida é contrastada com mensagens radiofônicas (do governo, por certo) que alardeiam safra agrícola recorde. O motorista só poderia ser contrabandista do artigo mais desejado: comida. Curioso então que tanto Gina como Cándido não tenham tanta fome quando defronte de seus pratos em almoço tão esperado. Cándido estranha a falta de apetite de Gina e justifica-se comentando que em sua idade avançada não se tem mais tanta fome. A fome, a energia mobilizadora da mudança seria seu melhor conselho para Gina...

A garota da foto que acompanha Cándido por todo o filme em suas digressões oníricas/espirituais (afinal, a mais interessante e misteriosa guantanamera do filme), será a maior escarnecedora da solidão de Adolfo, em sua ânsia egóica e hipócrita ao destilar sua ode demagógica ao amor, amor que ele próprio não crê nem pratica.

O discurso inflamado do funcionário público servirá de fundo sonoro para o encontro final entre Gina e Mariano sob chuva torrencial triunfante. Posto que apenas os que estão próximos da morte vêem a menina, (dentre todos apenas Yoyita e Cándido a viram) fica clara a mensagem final – também Aldo morrerá em breve, também o racionalismo truculento de bases estatais morrerá. O Grande Orador, famoso pelos grandiloquentes discursos, também morrerá. A velha Cuba morrerá, não necessariamente as ideias socialistas morrerão, mas morrerá a condução deste legado pela geração revolucionária propriamente dita. Ao enterrar Yoyita enterra-se uma nação, ou melhor, uma determinada ideia de nação. O cortejo fúnebre – que é o filme – é o enterro desta nação. Cuba pertencerá ao amor dos que fazem o país agora.

No final da vida Alea também viu a pequena menina guantanamera. Teria dito a garota algo como na música: “Yo soy un hombre sincero...Y antes de morirme quiero/Echar mis versos del alma”. Após o encontro compôs um belo e esperançoso canto do cisne que é Guantanamera, o filme.

Afinal, se os velhos têm de partir, não devem viver para sempre (como diz a narração mítica da lenda de Iku acerca de um certo dilúvio bem conhecido também na tradição judaico-cristã), que seu amor e sede de liberdade possam contaminar os homens e mulheres de hoje, Gina e Mariano. Estes farão, com sua fome de amor, uma Cuba melhor.

Nenhum comentário:

Postar um comentário