sexta-feira, 25 de junho de 2010

"Sorria, você está na América Latina... e na poesia do homem comum universal", por Roger Bravo


Ninguém parece beber uísque em Whisky, o filme. Apenas o uruguaio que retorna ao país natal após vinte anos, vindo do Brasil onde é bem-sucedido, apenas ele, não parece precisar muito da sugestão do fotógrafo de pronunciar a palavra e assim conseguir um sorriso menos apático, mais sincero. Já o sorriso do espectador irrompe várias vezes em correntes de estranheza e deslumbramento com a certeira ironia, o instigante mistério e as situações desconcertantes da película.

A circunstância de ser o uísque a bebida preferida dos estadunidenses, contraponto cinematográfico e industrial aos países ainda em desenvolvimento da América Latina, coloca ironia extra na carga textual-simbólica do filme.

Whisky, de 2004, é uma pequena jóia da recente produção sul-americana que explora um certo sentimento de desânimo. Um torpor vesgo alcançável também pela bebida? Talvez uma lassidão própria da decadência de centros urbanos latinos ou ainda de um estilo de vida enfastiado ligado ao trabalho asfixiante em escala mundial. Dirigido e roteirizado por Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll tem ritmo que desperta curiosidade em sua lenta progressão através de expressivos e longos silêncios. Gonzalo Delgado Galiana assina também o roteiro e a impressionante Direção de Arte com sua riqueza expressiva hiperrealista de objetos e ambientações, especialmente na fábrica e na casa de Jacobo, o protagonista.

O filme evolui demonstrando grande segurança no desenvolvimento de narrativa minimalista traduzindo espécie de compaixão para com a simplicidade, com o homem médio e suas batalhas existenciais perpassadas por um universo trivial. É como se ultrapassando uma camada de superficialidade pudéssemos enxergar melhor a poesia presente no aparente mundo banal da sobrevivência diária de pessoas comuns.

É curiosa expressão cinematográfica do que poderia ser chamado uma eloquência da incomunicabilidade onde a rotina enclausurante parece enredar homens e mulheres num vazio cheio de pequenos grandes ressentimentos, frustrações e também esperanças.
Este trabalho se debruça essencialmente no estudo interpretativo da narrativa e dos personagens principais. Três preciosos personagens em atuações brilhantes: Andrés Pazos como Jacobo, um velho judeu do tipo casmurro, austero, dono de uma pequena e decadente fábrica de meias no Uruguai. Mirella Pascual como Marta, sua eficiente e cuidadosa empregada de confiança, antiga companheira de rotina, referência para quando está em apuros. Para quando não está também. Jorge Bolani como Herman, seu irmão emigrante, alegre e expansivo, empresário do mesmo ramo, natural rival nas conhecidas e atormentadas redes de família.

Quatro minutos se passam até que a primeira fala do filme aconteça. Na belíssima sequência de abertura as imagens de um deslocamento subúrbio-centro em carro defeituoso são intercaladas pelos créditos iniciais com música minimalista ao fundo executada pela Orquestra Reincidentes. Jacobo inicia sua jornada ao trabalho ainda na escuridão da madrugada. Pouco a pouco avança as ruas enquanto o sol nasce. Depois, estaciona o automóvel e vai à lanchonete onde toma o café da manhã de todos os dias. Lá pergunta se a luz do lugar não pode acender. Após umas batidas do garçom a lâmpada fluorescente volta a funcionar. Na vida de Jacobo tudo parece estar sempre precisando de reparos e não é ele que pode repará-los sozinho, ainda que o tente. A persiana de seu escritório cujo conserto nunca acontece, as suas máquinas obsoletas que causam estragos na produção, seu carro que sempre demora a pegar. Para todos os problemas Marta está sempre lá. Sempre, pontualmente. Chegando até mesmo antes do patrão na porta da fábrica.

Mas, acima de tudo, Jacobo parece tentar empreender uma jornada em direção à luz, à compreensão. À semelhança de um cego que precisa ser amparado por alguém, por isso busca sempre a luz. Whisky, todavia não mostrará sua redenção, seu sucesso.

É também a Marta que Jacobo recorre em estranho diálogo sobre a chegada do irmão para o matzeibe, ritual religioso em tributo à mãe, falecida há um ano. Diz com humildade o patrão: “Com meu irmão em casa as coisas ficam meio difíceis. Acho que vou precisar um pouco de ajuda. Havia pensado que, se não for incômodo, podias ficar comigo em casa por um par de dias apenas.” Marta fingirá ser esposa de Jacobo durante a estada de Herman. Close de Marta em que fica claro algum desconforto com a situação. E depois a aquiescência: “Sim, sim, claro. Perfeitamente.” Jacobo insinua uma compensação financeira ao que Marta o interrompe dizendo “não, não, eu entendo perfeitamente”. Mas o que é que Marta entende tão rápida e perfeitamente? A sugestão e, principalmente, a aceitação de pronto, são estapafúrdias numa relação convencional patrão/empregada, por mais sintonizados que sejam os dois. Fácil entender que o competitivo Jacobo (a única coisa que o tira da apatia e o anima para o prazer ou para a cólera parece ser uma disputa esportiva) não queira que seu irmão o veja tão sozinho e decadente. Contudo, a aparente naturalidade da prontidão prestativa de Marta, também nessa seara familiar, participando ativamente de uma simulação dessas proporções, permanece sem maior explicação. E que bom. O que seria um furo de roteiro transparece como uma teia de mistério e estranheza muito interessante conferindo uma curiosidade cada vez mais aguçada com relação às motivações e ao passado dos personagens. Elipses e cenas inconclusas de determinada ação constituem recurso fundamental do filme. O não-dito é arma poderosa nesta trama insólita e extremamente engraçada. Um riso dolorido é verdade, mas ainda assim, um riso.

Marta exibe, apesar de comportamento que poderia ser lido como subserviente e conformista, atitudes que demonstram busca pelo prazer. É a única que procura sair um pouco do ambiente fechado e sem janelas da fábrica. Reserva então tempo para a companhia do cigarro em intervalos no trabalho. Vai ao cinema, mesmo sozinha. Tem com seus fones de ouvido no ônibus e em Leonardo Favio cantando O Quizas Simplemente una Rosa, oportunidade para um pequeno sorriso. Marta sonha. Tem esperanças. Esperanças com Jacobo talvez? Dificilmente já que o homem é uma pedra. De toda forma, não se sabe. Ainda e sempre a prontidão para servir antes de tudo. As palavras mais repetidas de Marta são “permisso”, seguida de “preciosas” quando precisa falar que as coisas são (ou deveriam, no jogo social, ser) belas ou maravilhosas. As coisas são belas e maravilhosas apenas no discurso porque a realidade é bem outra: solidão e mesmice. Talvez apenas uma expressão seja ainda mais repetida: “Até amanhã, se Deus quiser”. O amanhã de Marta é um outro mistério. O de Jacobo é certo. Está perdido sem ela.

Herman provoca, com sua chegada, o turbilhão de acontecimentos deslocadores da rotina. Nada mais será como antes. É como se trouxesse consigo as promessas de entusiasmo e o sol do gigante tropical de onde retorna. Traz para Marta a utopia do paraíso grandiloquente das Cataratas de Foz do Iguaçu, paraíso a que ele próprio curiosamente nunca foi (apesar de morar perto) e onde Marta e Jacobo fingem ter passado lua de mel. O plano de Herman é fazer as pazes com o irmão, desculpar-se pela ausência durante a perda da mãe. Chega a oferecer uma soma em dinheiro vivo como forma de compensação.

É dele a idéia de uma rápida temporada dos três em Piriápolis, balneário turístico perto de Montevidéo. Propõe a pequena aventura no mesmo jantar em que fala de seu encontro com Tony Ramos, o famoso ator brasileiro. Marta aceita, claro, imediatamente. Há sempre muitas oportunidades para os dois, Marta e Herman, estarem sozinhos. Conversam na padaria ainda na capital, na piscina e na praia em Piriápolis. O encontro da praia é especialmente significativo pois parece repetir o enredo da canção de Favio. Na conversa animada riem, parecem se conhecer melhor e desenvolver uma identificação. No momento em que Herman diz que Jacobo vem chegando zangado e observa que este ganhara uma máquina fotográfica numa máquina de apostas, percebe-se que ele, Herman, é que ganhara enquanto Jacobo realmente perdera Marta, apesar de nunca ter lutado efetivamente por ela.

Marta e Herman também estão sozinhos quando ela se dirige arrumada para seu quarto. A ação de deslocamento é belamente executada mostrando-a em tempo real sem cortes, Marta atravessando longo corredor onde se escutam apenas seus passos com o salto alto. Herman a recebe, ainda ao telefone com a esposa, sinalizando para ela se sentar ao seu lado na cama. Ela aceita.

Numa das melhores cenas do filme, Herman cumpre promessa e canta num karaokê do hotel para uma platéia diminuta. Parece cantar para Marta olhando sempre para ela que retribui o olhar com leve sorriso. A letra da canção ajuda a dar a impressão que ele canta para ela, afinal, aqui e ali conta um pouco da história dos dois e os momentos na praia. Ela acompanha sutilmente alguns versos, acende um cigarro e ouve as palavras doces que o sisudo Jacobo nunca poderia dizer:

“Hoje colhi uma flor. E chovia, chovia. Esperando o meu amor. E chovia, chovia. As pessoas passavam apressadas. E a cidade ficou deserta pois chovia. Nós iremos andando pelas ruas vazias. E eu fiquei pensando em tantas coisas bonitas como aquele dia na praia quando nos conhecemos. O vento brincando com seu cabelo de menina. Ai que sorte, que sorte você agora é minha. Quando meu amor chegar lhe direi tantas coisas ou talvez simplesmente lhe dê uma rosa. Porque eu colhi uma flor. Esperando meu amor.Que o seu canto me alegre. Que o seu riso me alegre. Que se alegre o silêncio, porque você agora é minha. Com certeza o melhor é uma rosa. Iremos conversando. Iremos nos beijando pelas ruas vazias. Sim, o melhor é a rosa. Sim.”

Ao observar os olhares dos dois Jacobo enciumado decide pegar o dinheiro de Herman que recusara antes. Em sequência extremamente feliz onde fica claro seu ressentimento com o irmão, aposta tudo no cassino onde crê que vai perder. Para sua surpresa ganha e guarda a fortuna retirando apenas uma pequeníssima parte e colocando a bolada num pacote. Já de volta a casa despede-se de Marta entregando-lhe o pacote com a pequena fábula. Marta volta de táxi, ignorante do conteúdo do pacote. Crê que seus dias de sonho acabaram e chora.

Ao final Jacobo executa seu pequeno ritual de abertura da fábrica. Os planos que exibem a ação são idênticos aos do início com uma diferença. Marta não está lá. Jacobo prepara sozinho seu chá costumeiro de começo de expediente talvez pela primeira vez. À pergunta de Karina, uma funcionária, que pede permissão para escutar um pouco o rádio, diz não. Apenas para corrigir-se e dizer que quando Marta chegar deve Karina perguntar a ela. As máquinas assumem absolutas e barulhentas e é o fim.

Marta voltará ao trabalho e a Jacobo? O que fará com tanto dinheiro? O que diz o bilhete que entregou a Herman às escondidas e que ele deverá ler apenas no avião? Ela, sonhadora de espírito, tem a chance de por fim na rotina massacrante, castradora do prazer e da beleza. O que fará Marta? O filme, na melhor tradição de obra aberta é muito estimulante para desdobramentos na mente do espectador. Há diversas possibilidades. Cá comigo gosto de ver Marta conhecendo verdadeiramente as Cataratas de Foz do Iguaçu e jantando com Herman após conseguir um autógrafo de um simpático Tony Ramos. Nosso grande ator popular de tevê simpatizará com o recém casal e dará um jeitinho brasileiro para que os dois possam dar uma volta pelas ruas vazias de algum cenário do Projac. Tudo debaixo de uma jubilosa chuva artificial e ao som de O Quizas Simplemente una rosa cantada, à capela, por um mais feliz e renovado Herman. Teria Marta então, no cenário construtor de ilusões das suas admiradas novelas brasileiras, um ânimo e uma alegria plenos, verdadeiros. Não precisaria de nenhum tipo de uísque para sorrir. Pobre Jacobo...

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