quarta-feira, 31 de março de 2010

“O padre e a moça” por Maria Cecília Shamá


Dessa vez o problema foi a janela. Interrupção da opressão, quadrado minúsculo de novidades ultrapassadas. O ir à janela tinha sido uma provocação. Se não há nada para ver, ninguém para falar, um outro alguém sequer para escutar, porque se insiste em ficar na janela? Afinal, uma janela é só uma janela. Nada mais. Ou teria a janela mais conteúdo do que a moça? A janela era a solidão acalentada, agarrada a um fiapo de esperança. A questão não era a janela. Era a rua, eram os outros. Afinal, era só uma janela. Não era?

É dessa forma que se inicia O padre e a moça, quando do tom inquisitivo de Honorato para com Mariana, num jogo incessante de respostas sem perguntas. São as elaborações de um homem enciumado indagando a uma moça enclausurada numa cidadezinha isolada do mundo, acerca do por que dela procurar. Ato desesperado que se instala como forma de expectativa, transforma-se em amor mal concebido pela figura do padre recém chegado, e exaure não só a moça, mas a quem assiste sua trajetória preenchida pelo nada.

Mariana (a atriz Helena Ignez) é vista pelo prisma de sua mocidade sufocada pelas crendices e hierarquias sociais de pessoas arcaicas, tanto quanto a paisagem em que estão estabelecidas as construções da cidade. É no enterro do antigo padre que vemos o delineamento sócio-cultural dos habitantes daquela região. São velhas beatas fofoqueiras, orações culpadas visando o perdão advindo da confissão do pecado e não do arrependimento do gesto, um tutor abusivo legitimado pelo status da família e a religião hermética que circunda a atmosfera do local. A denúncia social cabe ao bêbado da cidade, o farmacêutico Vitorino, figura recorrente na filmografia mundial. É aquele personagem relegado às margens sociais e visto com incredulidade, em nome dos bons costumes. Sua embriaguez e falta de estabilidade social são a expressão de condescendência adquirida tanto por ele mesmo quanto por Joaquim Pedro de Andrade. Uma denúncia social com ares de derrota, manifestada por picos de sentimentalismos convenientemente freados.

Os habitantes da cidade não se tocam, não conversam entre si, nem ao menos se olham detidamente. O tom de fofoca fica claro no uso da câmera ao captar a linguagem corporal dos atores, sempre de costas, sussurrando segredos, ocupados demais em se manter enclausurados de si e para si. A sociedade legitima seus desvios e vícios desde que recolhidos ao universo do alheio. O ser humano é então visto como um conjunto de partes incompletas, agregadas à escassez de não querer ser algo mais.

O padre encarnado por Paulo José, misto de revolta e ingenuidade, vê Mariana mais como causa social do que como mulher. A fuga é um ato desesperado por liberdade. Mas não há ninguém lá fora, as casas estão vazias, a estrada é grande demais para ser percorrida por apenas dois sujeitos, em busca de um futuro incerto. Na vontade de ter um futuro, na necessidade de controlar o presente a todo custo. Mas a vida é imparcial e não permite escapismos a longo prazo.

A fotografia de Mário Carneiro nos lembra a todo instante o peso das convenções. O cinza das pedras se mistura à pele dos moradores da cidade, e as edificações suportam o peso das tradições. A igreja imponentemente clara retrata a ilusão de perfeição designada aos seres superiores. As paredes sufocam, impedem a passagem, o chão que limita o tombo é o mesmo que conforma. E dessa forma constituímos a hierarquia social do conformismo, assim como muitos o fizeram antes de nós e o farão por muito tempo depois.

Mariana rompe o invólucro do amor proibido. Permite-se ser vista como mulher e não experimento social, pelo homem para quem transferiu a responsabilidade da possibilidade. Na cena de amor entre os protagonistas se insere o erótico das partes, que vão dar vida ao todo.

Uma existência desgastada por tradicionalismos e abandono. Uma cidade do interior de Minas Gerais entregue a si mesma e por isso alheia ao mundo. Talvez fosse uma forma de traduzir certa falta de esperança que acometeu os brasileiros na década de 1960. Era um grito sufocado de uma nova geração, do próprio cinema novo, tendo que lidar com o passado evocado pela intransigência institucional. Vidas que precisavam ser, apesar delas e para além delas. Não só pelo ato de se estar vivo, mas de se sentir vivo.

Um comentário:

  1. Não gostei . Pobre demais, sou mais os filmes americanos. Aliás, é covardia comparar.
    Evito filmes brasileiros. São fracos, apagados, tristessssss, deprimentes. Evito a qualquer custo. Esses" filmescos" que relatam historinhas ocorridas no interior de algum lugar, onde o catolicismo impera ... são incissivamente chatos, previsíveis...

    ResponderExcluir