domingo, 29 de novembro de 2009

"Diários de motocicleta" por Cleiton Costa


Se tem um filme que possa ser chamado vulgarmente de latino-americano, esse filme é Diários de Motocicleta (Walter Salles, 2004). Ele foi produzido por cinco países latino-americanos (Brasil, Chile, Argentina, Peru, Cuba, entre outros não latinos); o diretor é brasileiro; atores pricipais: Gael García Bernal (mexicano), Rodrigo de La Serna (argentino); e a história tem como protagonista quem viria a ser o maior revolucionário-ícone-pop latino (ou talvez mundial): Ernesto Guevara de la Serna, antes de se tornar o tão conhecido guerrilheiro “Che”.

O filme narra a trajetória de Guevara e seu amigo Alberto Granado, que saem da Argentina com a moto “la poderosa” decididos a conhecer a America do Sul, por motivos essencialmente turísticos. Mas, com o passar do longo caminho percorrido, suas visões idealistas da America exótica vão ruindo diante da dura realidade dos países por que passam. Foi essa realidade que afetou profundamente Guevara e o fez seguir o rumo militante. A transformação no fim da viagem. O que afirma Diários de Motocicleta na proposta Road Movie.

Walter Salles, como diretor, teve uma boa sensibilidade para filmar essa transformação. O filme assume o ponto de vista de Guevara, e seu interior é refletido na estética formal da imagem. Logo no começo, os planos são mais rápidos, muita câmera na mão, e a fotografia mais intensa e quente, expressando a animação de começo de viagem, o início de uma aventura. Com o andar da viagem, quando encaram um povo sofrido e injustiçado pelos mais poderosos (donos de terras), gradativamente, os planos vão ficando mais lentos e contemplativos, a fotografia mais naturalista, quase documental.

Mas o verdadeiro desafio de Diários de Motocicleta estava claro: a construção do personagem Guevara. Desafio este que Walter Salles não venceu. Diante de tal símbolo latino (ícone humano que existiu e foi inventado ao mesmo tempo), sempre pairou o questionamento: como construir sua imagem num filme? Mistificá-lo mais do que já é? Ou revelar o lado pouco explorado do humano por trás do mito? Salles resolveu mistificar, o que não acrescenta informações sobre quem Guevara realmente foi. Deu-nos mais do mesmo, o que já sabemos decorado. O filme transforma Guevara na moral cristã personificada, a bondade em pessoa, o homem honesto que nunca mente, que entende a dor do próximo, que sempre estende a mão ao mais necessitado: seja para dar tudo que tem (como no caso dos comunistas ambulantes), seja para demonstrar confiança e respeito (no caso dos leprosos). Além das alegorias primarias para demonstrar essa transformação: os 15 dólares (nada sugestivo) da sua namora que ele doa, demonstrando total desapego do material; não esquecendo a cena da travessia do rio a nado, filmada de forma grandiosa, que simboliza a concretização da metamorfose. Só falta ele virar uma borboleta no final do filme, ou Jesus Cristo.

É claro que esse não é o único filme a abordar Che dessa forma. O próprio Che (primeira parte da cinebiografia de Guevara do diretor Steven Soderbergh) vai por esse caminho, mistificando Ernesto em sua fase militar em Cuba: homem duro, mas que nunca perde a ternura. Na verdade, os dois filmes se completam, cumprindo o papel de endeusamento. Fase do pré-mito e a fase do mito.

Diários de Motocicleta seria um bom filme se não tivesse esse Ernesto Guevara idealizado. Afinal, o filme é bem filmado e bem realizado narrativamente, além do valor social-histórico: escancarando a America Latina injusta do “ontem” que reflete no hoje. Mas não podemos analisar um filme pelo o que ele poderia ser, e sim, pelo o que é, pelo que chega até nós. Diários de Motocicleta é tão idealista quanto à tão famosa imagem do Che, com sua boina e seu olhar distante, que ironicamente virou marca registrada em camisas de lojas capitalistas.

2 comentários:

  1. Realmente esse filme seria muito bom sem esse idealismo, mas na minha modesta opinião(não tão assim já que quem é realmente modesto não se compreende enquanto tal)não teria o mesmo impacto que a obra final adquiriu.

    Boa critica, critico apenas o "comunistas ambulante" que parece uma referência ao mercado de camisetas citado no final.
    ;)

    ResponderExcluir
  2. Se esta no livro, nas memórias de Granado, quer dizer que o roteirista inventou os ocorridos? Queria que Ernesto demonstrasse que seus atos eram pensados para que as pessoas gostassem dele? Pra que? Querer respeitos de miseráveis? É tão dificil de acreditar que tal pessoa existiu? Se não fosse o Tche e sim um personagem qualquer ficticio, o filme seria bom o suficiente pra ti? Ou só o fato de ser ele um mito te incomoda? Jesus de Zefireli é ruim por seguir a risca a história da Igreja? JC de Pssolini também? Do mel Gibson? Cai na real, Diarios de Motocicleta é cinema puro e autoral, independente do personagem ser o Tchê. Cada pseudo que aparece.

    ResponderExcluir