domingo, 18 de abril de 2010

"A moça e o padre" por Roger Bravo


Confluência criativa singular de vários artistas diferenciados, O Padre e a Moça, segundo longa de Joaquim Pedro de Andrade, exibe rigor formal e sensibilidades raras na captação sensorial da saga, algo mítica, da relação impossível entre um religioso e uma jovem. A premissa atravessa o imaginário popular há séculos e remete à história real vivida por um professor de teologia e uma mulher incrivelmente à frente de seu tempo – a clássica história de Abelardo e Heloísa. Baseado no conto homônimo de Carlos Drummond de Andrade a estréia cinematográfica de Paulo José destaca-se também pelas precisas atuações de Mário Lago, Fauzi Arap e, sobretudo, de Helena Ignez.

Curiosamente incluído no movimento do Cinema Novo (pelo próprio Glauber Rocha inclusive) esta pérola do cinema brasileiro teve como produtor associado o lendário e controvertido Luiz Carlos Barreto. Foi restaurada, junto com a filmografia completa do diretor, em empreendimentos liderados por Alice de Andrade, filha de Joaquim Pedro, em esforço que reuniu mais de cem profissionais ao longo de cinco anos. Mas o que é O Padre e a Moça, o filme, passados quarenta e cinco anos de sua realização? Retomado nesta primeira década do século XXI, o filme motivou matéria especial na revista cinematográfica eletrônica Contracampo que lhe dedicou rica atenção. Na apresentação do estudo, a pergunta primeira. Como se aproximar do filme? Qual o melhor caminho a seguir?

Não por acaso a história carrega no título os personagens-conceito. Este é um filme de grandes personagens e, para deleite da platéia de qualquer época ou lugar, personagens com intérpretes à altura de seus desafios. Para investigar então o filme importa antes de tudo conhecer melhor a geografia humana e não física desta narrativa.

Uma aproximação primeira junto aos personagens principais toca aspectos delicados da formação do povo brasileiro especialmente os atinentes à aura divinizada-demonizada da figura dos religiosos católicos. Anjos-demônios na colonização dos aborígenes no solo do Novo Mundo da América do Sul o papel da história lhes atribui, atualmente, faceta mais francamente criticável. Contudo, não é sobre a herança maldita de padre Anchieta que o filme pode ser acessado. Não é sobre a chaga dos pecados da instituição Igreja Católica brasileira que o filme pode se tornar mais inteligível. Em outras palavras, o fato de que a Igreja ter papel ativo no regime militar instaurado no Brasil apenas um ano antes do lançamento do filme em nada ajuda a adentrar esta história. Este encontro, a natureza desta relação, deste padre e desta moça em particular não parece ancorar-se em deduções objetivamente histórico-políticas geograficamente localizáveis em termos nacionais, ou melhor ainda, em termos espaciais quaisquer. Este encontro guarda, de fato, inspiração imemorial, ontológica sem maiores determinismos de território. Seu espectro perpassa culturas, épocas e também continentes. Seu poder magnético convida a percepções de um não tempo-lugar.

Se, por um lado a crítica da arte precisa balizar uma obra por suas relações com o caldo cultural de seu tempo, certas obras, por vezes, pedem uma aproximação sem maiores condicionamentos histórico-estéticos em relação a seu significado. Parafraseando Ariano Suassuna ao citar Dom Quixote, de Cervantes, certas obras atingem melhor o universal por serem, paradoxalmente, muito locais. Nada mais mineiro do que a cidadezinha de nome poético, São Gonçalo do Rio das Pedras e, no entanto, nada mais universal, do que o drama da moça que sonha com liberdade e paixão ao fugir com o padre do vilarejo.

A textura humana do padre de Paulo José neste filme convoca o ideia da falibilidade em outro plano, outra dimensão que não aquela, antropológica, citada há pouco em associação à história da Igreja. Por óbvio, a sinceridade e a cadência pessoal de suas convicções altruísticas ultrapassam em muito a chamada caridade cristã. É claro, há muito mais. A questão também não se apresenta exatamente como a contradição, o simples dilema ético entre o voto de castidade e os impulsos sexuais inerentes ao ser humano. O ponto nervoso se dá realmente na tensão de vida e morte com que os dois são confrontados por todo o filme.

A construção contida e constrangida de Paulo José para o padre certamente pertence a um seleto grupo de grandes atuações de um cinema intimista de expressões delicadas e raras na cinematografia brasileira. Tão marcante o papel, tão definidor de suas possibilidades dramáticas como ator no cenário brasileiro que, após extensa carreira que atravessa décadas, coube resgate/homenagem da figura do padre no excelente A Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele, 2009.

Paulo José chega ao vilarejo para substituir padre morto recentemente, cujas suspeitas de concupiscência são apontadas por outros personagens. A juventude (correspondente físico de pulsão de vida) da mulher, Mariana, destoa numa cidade de velhos com exceção de um comerciante iconoclasta, Vitorino, que flertou com a jovem e cuja persona permanece um tanto misteriosa por todo o filme. Não à toa o conflito de gerações. A vila e a própria Mariana são dominadas pelo líder local, o velho Fortunato, interpretado por Mário Lago que vive maritalmente com a moça. O final do padre e da moça, perseguidos por uma massa intolerante é trágico. E, no entanto, a cidadezinha nunca conheceu ninguém mais envolvido com as pulsações de vida (vida dividida, mas ainda assim, vida em alta intensidade) do que estes dois.

Mariana, na pele de Helena Ignez, experimenta o suplício dos suplícios ao ver sua vida presa em diversos níveis ao “senhor feudal” do lugar e ao próprio feudo como espaço enclausurante. Afinal, a vila é vila por não ser o mundo, mundo vasto de grandes possibilidades naturais para os jovens, mundo este sempre ausente. Não há um plano que não seja do mundo particular de São Gonçalo do Rio das Pedras, à exceção da fuga, evidente. Ao entregar sua juventude àquele lugar pequeno onde nada acontece é sua própria vida que resta sacrificada. Vida sufocada pela opressão do tempo que passa e do próprio peso do tempo do velho que desaba sobre si à noite. Vida morta. E este mundo, não exatamente por ser pequeno ou quieto demais, mas por não comportar suas necessidades de movimento e energia, impede as possibilidades de vida plena, compatível com sua natureza inconformada e desafiadora.

Sua interpretação cheia de nuances é achado precioso, ainda mais valorizado pela costumeira ausência de bons papéis femininos no cinema. Por vezes apontada como confusa e insegura, na verdade sua composição joga com contradições complexas que tornam sempre mais rico um personagem de dimensões míticas dramáticas. Tédio e medo, desejo e escárnio, raiva e humildade, vários são os terrenos emocionais que Helena consegue imprimir com vigor e intensidade. Antes de comunicar a emoção superficial de uma cena com Lago, interessou mais à Ignez penetrar em lugares emocionais com matizes múltiplas. As variações sutis numa mesma cena são um mérito por si só e se afastam do caminho mais fácil, mais tranquilo da comunicação direta que acontece geralmente través de uma única emoção básica e forte, cristalinamente expressiva. Seu desespero com a relutância do padre em aceitar a união é um dos pontos altos do filme em que a fotografia e a atuação complementam-se em construção sensorial magnética. Por estes e outros motivos a personagem da moça por vezes parece ser a mais bem construída e interessante de todo o filme; gravitando em seu entorno tudo acontece e muitas vezes sendo ela o vetor da ação.

No papel de antagonista principal Mário Lago encarna a elite branca, tacanha e mesquinha que vampiriza a cidade e, principalmente, a juventude e a beleza da moça. O que seu perfil tem de lugar-comum pode ser lido como representante humano do superego ou arquétipo do poder, associado à velhice opulenta. Não por acaso a imagem cristalizada no imaginário dos cristãos sobre Deus é o deus de Michelangelo com aspecto de velho de cabelos brancos.

O personagem de Fauzi Arap é verdadeiramente fascinante ao destoar da lógica de oposição velho/novo, pois ele parece sempre, e ao mesmo tempo, novo e velho. Da mesma faixa etária que o padre e a moça seu personagem é fusão de características associadas comumente à juventude e à velhice: carrega a amargura e a paixão, o furor iconoclasta e um peso rabugento, a ambição sexual da juventude e uma impotência em vários sentidos. É algo sugerido na estranha e um pouco indiscernível cena de aparente flashback onde a moça e ele tem um encontro frustrado. A impotência de mudar a relação de forças do lugar (vila e moça dominadas pelo fazendeiro rico) teria reflexo de sintonia também numa espécie de impotência sexual? Seu tom raivoso parece evocar impulsos assassinos que poderiam explodir a qualquer instante, contudo nunca acontecem. Arap parece carregar então as duas pulsões num só corpo, pulsões de vida e morte. Talvez por este motivo não chegue nunca a, de fato, rivalizar agressivamente com o padre no afeto da moça. Seu anarquismo oferece estranha solidariedade entre “iguais”.

Os silêncios e vazios do filme colocam o espectador na esteira certa dos tempos e sentimentos dos personagens numa cidade pobre, isolada e decadente de cidadãos anciões e conservadores. O fulgor da juventude encontrando a força das tradições e da religião como antagonista maior. A suposta pequenez dos indivíduos perante o julgamento moral hipócrita e castrador do senso comum moralista provinciano. Mas nenhuma aproximação descritiva poderá dar conta das sutilezas desenhadas pelo preto-e-branco de Mário Carneiro.

A mise-èn-scene de Joaquim Pedro instaura uma duração de convivência tempestuosa entre a escuridão agressiva da atmosfera aprisionadora da cidadezinha e o calor sexual da moça e do padre, sintoma da pulsão de vida dos jovens. A luz, especialmente expressiva, capta a atmosfera enfastiada e opressora que é melhor percebida através dos planos longos e pelas pausas destacadas quando da interação dos personagens. Há tempo para o espectador preencher mentalmente a atividade interior dos personagens ao passo que constrói imaginativamente seu passado ao assistir ao filme.

A montagem de Eduardo Escorel encadeando estes vários planos extensos será decisiva para a construção da tensão sexual no aguardado encontro entre o padre e a moça nas paragens desertas de sua fuga. Neste momento há descontinuidades e rapidez de cortes constituindo um clímax específico que oferece uma fruição não tanto racional, mais sensorial à apreensão da cena. A perseguição que, depois do retorno ao vilarejo, culminará no crime do assassinato dos dois também ganha em impacto dramático porque vem após toda a calmaria sufocante percorrida pelo filme até então.
O músico Carlos Lyra distancia-se do seu porto mais famoso (a bossa-nova) e elabora digressões e arranjos de coro feminino de beatas em temas latinos caros à tradição católica com extrema felicidade. Suas entradas induzem uma elevação da emoção a partir do material visual, contudo sem chamar a atenção demais para si, integrando-se à narrativa de forma orgânica.

O Padre e a Moça serve ainda a um debate de estilos, a uma discussão sobre identidade visual de um povo. O quanto de sua forma austera e universal pode ser creditado a uma filiação estética européia na tradição de um Bergman? Haveria um caminho visual autônomo para o filme sem adestramentos culturais neo-coloniais? Ou haveria condicionamentos na recepção ao filme e não necessariamente em sua realização?

Seja como for, pouco se discute sobre sua força, sua permanência e coesão conceitual. A obra permanecerá viva e instigante por várias gerações por ser não de um tempo-lugar referência, mas por pertencer ao terreno-tempo eterno sem fronteiras do desejo humano.




REFERÊNCIAS

http://www.contracampo.com.br/42/frames.htm
http://www.filmesdoserro.com.br/noticias.asp?task=mostrar&id=84
http://www.imdb.com/title/tt0059560/

2 comentários:

  1. O filme pode ser baixado no site - http://rsfilmesbrasileiros.blogspot.com/
    Valeu Roger!

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    1. Sim, Itamar. Que boa dica. É um filme que merece muito ser mais visto. Gratidão!

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