domingo, 18 de abril de 2010

"O senhor mentiu pra mim, Senhor Jabor" por Maria Cecília Shamá

E a propósito, não está tudo bem.







“E nós, hoje, nesta infernal transição entre o atraso e uma modernização que não chega nunca? Quando o Brasil vai crescer? Quando cairão afinal os "juros" da vida? Chego a ter inveja das multidões pobres do Islã: aboliram o tempo e vivem na eternidade de seu atraso. Aqui, sem futuro, vivemos nessa ansiedade individualista medíocre, nesse narcisismo brega que nos assola na moda, no amor, no sexo, nessa fome de aparecer para existir. Nosso atraso cria a utopia de que, um dia, chegaremos a algo definitivo. Mas, ser subdesenvolvido não é "não ter futuro"; é nunca estar no presente”, Arnaldo Jabor.


Existe um grau de permissividade na sétima arte, julgado pelos revolucionários de plantão, como um tipo de alienação social. A tal da identificação com uma obra cinematográfica, seja ela fictícia ou baseada em fatos reais, seria então, ponto de confusão numa análise crítica. E essa eterna crença na necessidade extrema da quarta parede, nos leva a uma simplificação do pensamento, tão reacionária quanto vazia. No filme do Jabor não existem mais paredes, o diretor derruba a casa inteira.
A figura da classe média, ampliada em sua mediocridade por certo olhar burlesco, expõe a todos que um dia, viram aquele mesmo casal, aquela mesma família, aquelas mesmas paredes. Pais, mães e filhos, sobrevivendo através do retrato social. E os operários de construção, de uma nação chamada Brasil, presos no salto alto da madame, enquanto a mesma delibera incansavelmente tarefas domésticas. Quando o custo de vida acompanha a exaustão das práticas e cobranças sociais, e expõe a qualquer um, como manter uma lógica imparcial?

Afinal de contas, há de chegar um tempo em que os anos serão cobrados. Os vinte e seis anos passados juntos. E enquanto as paredes mofavam, assim como o casamento, os filhos cresceram e foram criados pela sociedade. A má criação tão constituinte de vários de nós, relegados à prisão domiciliar ou à falsa noção de consciência de si e do mundo. O ato de consciência espelhado nos tiques sociais, nos trejeitos de uma classe sempre mediana em essência. O casal principal interpretado por Fernanda Montenegro e Paulo Gracindo ofusca a falta de tesão sexual entre eles, na contabilidade dos fundos monetários da família. São as cifras o ponto de interesse do marido, passional em relação às notas e externo ao próprio corpo. Enquanto a esposa e filha (Regina Casé) compram identidades na loja mais próxima e o filho do casal (Luiz Fernando Guimarães) proclama aos quatro ventos a igualdade de tratamento entre as classes, são as empregadas domésticas as verdadeiras donas do lar.

Zezé Mota e Maria Sílvia constituem, juntamente com os operários que estão reformando o apartamento, o corpo explorado pela elite brasileira, econômica e social. A lógica econômica é dúbia: economizar no que é dado ao menos favorecido, para se poder extrapolar nas reuniões e festas dadas pelo quarteto. Os trabalhadores pagam diretamente pelo luxo de seus patrões. E a corda tende a arrebentar pelo lado mais fraco.

A miscelânea promovida pelo roteiro de Arnaldo Jabor em parceria com Leopoldo Serran é conflitante. Mistura de busca por uma identidade nacional e autoral, desfila para nós a figura da mulata, do carnaval, dos imigrantes. Trabalhadores de construção, instituições falidas, casamento e igreja, relações de poder. Sexo como escape, falta de sexo como escape maior ainda. No entulho vindo da quebra da antiga construção do apartamento, há também a efusão de obras de arte, impedindo a passagem dos tempos, atravancando a circulação das pessoas, emoldurando um tipo de retrato clássico e homogêneo, em reação contrária à configuração étnica do país.

Pois no apartamento da classe média, reforma-se a sala e não a cozinha. Ornamenta-se a casa de convidados e enfraquecem-se os laços familiares. Mesmo o desenvolvimento pessoal fica estacado diante das alegorias barrocas que integram a personalidade do intelectual de plantão, advindo de qualquer setor social. Crítica condizente aos anos dourados de 1978. Quando da esperança que pairava sobre a população diante de uma democracia recém-conquistada, dada pelos senhores do poder, uma liberdade feitas às pressas. Tal como o filme de Jabor. Havia muito a se dizer na compressão dos minutos e das horas. Havia muito que se queria dizer. E havia muito e nada ao mesmo tempo.

Pairou um sentimento de exposição ao término da sessão. Parecia um dos nossos, denunciando a dinâmica de nossa classe. Culpa burguesa, a se formar nas instituições de ensino. Institucionalizada pelos mesmos personagens, de um passado atrelado ao presente. Aos que possuem vinte e poucos agora, aos que possuíram os mesmos anos, décadas atrás.

Foi com certa amargura que veio a constatação. O senhor mentiu para mim, Senhor Jabor. Para todos nós. Se antes o peso da mensagem e a conscientização social eram a primazia, hoje em dia pesa o jornalista boçal, que revive seus ditos e os refaz, para festivais e linguagens mais apuradas. E nos deixa a missão de sermos e tentarmos preenchermos a lacuna, deixada pelo distanciamento analítico da forma e pela legitimação dos status do mundo intelectual de então. E sentimos mais de uma vez o incômodo de mentir por osmose sócio-cultural, que enquanto incômodo, faz-se um sentimento muito bem vindo.

2 comentários:

  1. Oi Ceci,

    Que interlocução, hein! E que crítica severa. Quando deparei-me com a crítica à crítica, onde o cinema cria fundamentos para uma observação crítica do meio social, do entorno eem que vivemos e, ao olhar oblíquo e 'catarático' dos reacionários sem reação, revolucionário sem causa acaba por ser flâmula de simbólica alienção provocada por um "Panis et Circus" da Sétima Arte.
    Será a flâmula dos sem reação e causa verdadeiramente voltada à cegueira do 'povo-acéfalo' ou a possibilidade da cegueira vir a ser curada numa simples cirurgia de catarata produzida não por um lazer, mas por uma projeção na telona?
    As relações sociais anda, veloz e crescentemente, tomando gosto pela impessoalidade, pela superficialidade.
    Diquer que trocar experiências com quem está a milhares de quilômetro de distância, pela internet, tornou-se mais "vibe" do que virar-se para quem está a todo momento ao nosso lado e trocar algumas palavras que não se resumam a intercessão dor termos necessários de ambos para a sobrevivência sobre o mesmo teto, tounou-se clichê, mas o clichê está na moda. Portanto, permito-me dizer e tal dignóstico é fato real e consumado.
    A classe média, C e D, mostra-se cada vez mais decadente de sua identidade personalíssima e mesmo social, haja vista que as constantes mudanças do cenário social local, guiado pelo global, gera uma grande incerteza sobre esta classe que vislumbra tornar-se A, mas está cada vez mais cedendo ao abraço da E... De quem é a culpa?
    Quando o gato sai os ratos fazem a festa. Enquanto deparamo-nos com um prisma de tantos anos, as vezes décadas, trazido de geração para geração, utilizado como chantagem até para influênciar escolha de maridos, revela-se mais em ruínas que os palácios incas, os nobres sem títulos da pirâmide social acabam por perder o tato...o olfato...o paladar. E como sobreviver? Vamos interpretar.
    Só nos resta convidar a empregada a sentar-se à mesa e cantarolar La Vie en Rose enquanto ela prova a nossa geléia de amoras importada com cujo o sabor desde que pôr o avental pela primeira vez.
    Voilá!

    Beijos.

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  2. Cecii,

    Relendo agora o que escrevi só tenho algo a dizer: "Quantos erros de DIGITAÇÃO!!!"

    Dá até vergonha!

    kkk!

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